terça-feira, 4 de novembro de 2008

Ciência 2: Vioxx ou O Jardineiro Fiel

"Parei de tomar o remédio porque prefiro
a doença original aos efeitos colaterais."


Os comentários do post passado tocaram bem onde eu queria. Eu ia chegar na parte dos interesses econômicos, mesmo porque ultimamente não tem nada mais pop – entre o que eu ando lendo por aí, parece que a "crise" é uma nova entidade apocalíptica ou libertária, de acordo com as convicções de cada um (que são, afinal, as mesmas). Mas voltando a falar da ciência, o erro em dizer que há um conflito sobre se é mais importante descobrir a cura da Aids ou comprar um veleiro e um jatinho, prejudicando assim o desenvolvimento científico, é que há poucos caminhos tão rápidos para comprar o tal jatinho do que descobrir a cura da Aids.
A indústria farmacêutica tem um faturamento de 160 bilhões de dólares ao ano, com um crescimento de 18%. Sempre tem uma droga nova, sempre melhor que as anteriores. Mas nas minhas aulas e nas prescrições do hospital, ainda estão lá, as mesmas drogas, pros mesmos problemas: os antibióticos, os analgésicos, os corticóides, os diuréticos e, com tudo isso de remédio, um inibidor de bomba de próton pra gastrite. Por que será que as novas drogas, tão fantásticas, não chegam aos nossos pacientes? Claro que um fator é a limitação de recursos do SUS, que não pode dar um remédio pra população só porque ele dá menos efeitos colaterais que o da indústria tal, paciência, melhor dar um remédio pior mas conseguir dar pra todo mundo sem faltar. Mas outro fator importante é: será que esses remédios são tão melhores assim?
Aqui no Brasil, por sorte, a propaganda de medicamentos de venda com prescrição não pode ser veiculada para o público, mas vocês podem imaginar a maravilha que deve ser nos EUA, no comercial da novela, a pessoa triste, o mundo preto e branco, e logo depois ela correndo feliz com um menino de boné, uma menina de vestido florido e um labrador num parque verdejante, depois de tomar uma fluoxetina. Mas mesmo não estando no meio médico, onde esse tipo de propaganda está sempre presente, dá pra ver na tv como querem mesmo que você acredite como o remédio pra dor de cabeça A é melhor porque tem cafeína, o B porque tem vitamina c, o C porque é efervescente e o D porque é "3 em 1" (ou seja, é pra dor de cabeça, tem vitamina c e cafeína, além de ser efervescente).
Afinal, com tanto dinheiro rolando, não é de se estranhar que em 61 estudos financiados comparando anti-inflamatórios, nenhum tenha deixado de mostrar que a droga nova era melhor. Claro que 48% deles usavam doses maiores da droga nova. Algumas das maracutaias metodológicas mais usadas em trabalhos científicos que recebem verbas da indústria são:

  • Comparar a droga com um tratamento sabidamente pior;
  • Comparar a droga com uma dose muito baixa de outra;
  • Comparar a droga com uma dose muito alta de outra (para mostrar que é menos tóxica);
  • Realizar estudos multicêntricos e só publicar os resultados mais favoráveis;
  • Apresentar resultados mais impressionantes (ex: medicamento que aumenta a sobrevida em 80% - de 2 meses para 3 e pouco XD).

Uma das formas que temos de ler mais criticamente um artigo é sabermos dessas coisas, e saber se o artigo foi financiado. Isso é feito declarando o "conflito de interesses". Só que a política de declarar esses conflitos só é observada em 33% de 474 jornais médicos e 3% de 922 de ciência.

"Descubra quem executou esse experimento. Parece
que metade dos pacientes recebeu placebo
e a outra metade, outro tipo de placebo."


Mas já que a brincadeira aqui é meter o pau na indústria, não dá pra esquecer do filho mais feio (dos que a gente ficou sabendo, é claro): o Vioxx.
A história é famosa, mas pra quem não conhece, o Vioxx foi um anti-inflamatório maravilhoso, muito mais eficaz e com menos efeitos colaterais, exceto um que era um pouquinho chato: matava os pacientes de infarto. Foi um tal de gente nova morrendo de infarto, começaram a perceber que podia, talvez, ter uma associação com o remédio e aí, a Merck, fabricante, foi lá toda fazendo cara bonita e disse que tirariam o Vioxx do mercado, mesmo antes de a justiça obrigá-los a fazer isso, porque apesar de as evidências serem ainda inconclusivas de que era o remédio que estava provocando os infartos, era a saúde da população a coisa mais importante. Isso, é claro, ganhou a simpatia dos juízes e ajudou a Merck a não pagar um monte de indenizações.
Se tivesse sido só isso, vá lá. Mas acontece que depois ficou provado que em um estudo com 70 (isso mesmo, não coloquei um zero a menos) pacientes por um ano já mostraria o risco de infarto. Agora nenhuma droga sai no mercado com um estudo de 70 pacientes por 1 ano, convenhamos. O que aconteceu foi que, após descobrirem uma mina de ouro, os cientistas se depararam com um obstáculo bem inconveniente, e que certamente tirariam o Vioxx do páreo. O que eles fizeram foi calcular quanto eles teriam que gastar com propaganda massiva pra que o medicamento desse muito dinheiro até descobrirem a relação com o infarto; esse "muito" tinha que ser o suficiente para pagar todas as despesas com a pesquisa, a propaganda, as indenizações dos infartados, e claro, um lucrinho pra Merck que também ninguém é de ferro, né?

Bom, se a minha idéia no primeiro post foi comparar religião e ciência, senhoras e senhores, acabei de apresentá-los o demônio. Mas se Deus não destruiu o tinhoso porque ele também é seu filho, também acho que não devemos execrar a indústria farmacêutica como a escória da humanidade. Na verdade, ela só faz o que todas as outras indústrias fazem (é, mais uma vez o capetalismo, que para muitos é a escória a ser execrada da humanidade e tal), mas mexendo com algo que é meio intocável, que é a saúde.
Essa visão maniqueísta fica ótima na ficção, seja na Bíblia ou nO Jardineiro Fiel, mas é fato que a indústria ajudou muito o desenvolvimento dos medicamentos, e a lógica de mercado também ajuda a fazer com que muitas drogas tenham um preço ínfimo (e outras, exorbitante, mas enfim).

Não tem muito valor acreditar-se no meio de uma grande conspiração mundial como a do filme do Fernando Meirelles que acabei de citar. Existe uma rigidez ética considerável quando se faz pesquisa com seres humanos, e, por mais que muitos achem que todo o resto do mundo só tem um bando de idiotas, isso não é verdade – tem um monte de gente mais inteligente do que nós que já pensaram nisso e que fazem alguma coisa a respeito. Uma teoria maniqueísta sempre é atraente, e eu não acho que, como dizem tanto, “Descobriram a cura do(a)... (coloque aí o que você quiser, mas os preferidos são aids, câncer, diabetes) mas mataram o cientista”, blá blá blá. Não acho que seja o caso, mesmo porque “câncer” ou “células tronco” são palavras que têm um significado muito diverso no imaginário leigo em relação ao que são de fato, e as inúmeras variedades de mecanismos ou apresentações. Afinal de contas, a indústria sempre se adapta a uma nova situação, e tira vantagem dela, mesmo porque é esse o seu trabalho – por exemplo a demonização da gordura trans, que parecia vir pra prejudicar a maioria das indústrias de alimentos, mas elas só aprenderam a ganhar mais dinheiro com os alimentos mais leves e light, com 0% de gordura trans, mais vitamina d, cálcio, zinco (e vários asteriscos).

Enfim, acho que devemos, sim, lutar contra e não compactuar com a não-ciência que está sendo feita por aí (e ignorar os brindezinhos e agrados da indústria nos consultórios já é um bom começo), mas cuspir no prato em que se come certamente não é o caminho.