Nos últimos posts eu discuti a ciência comparando-a com a religião por achar esse paralelo bastante válido e ilustrativo, e pretendo extrapolá-lo em todos os sentidos nesse e no próximo post.
É bastante freqüente ouvirmos a oposição entre esses dois campos, como se fossem pólos opostos e jamais associáveis. Considero essa uma mentalidade alguns séculos atrasada, como se ainda vivêssemos numa época em que houvesse só uma religião, como se todas as pessoas que a seguissem fossem iguais e como se ainda queimassem na fogueira quem ousasse pensar um pouco além. Isso, claro, é uma visão da religião do lado de quem a condena em detrimento da ciência, que é o ponto de vista com o qual estou mais familiarizada depois de ler tantos comentários em blogs da vida.
É interessante que Descartes, que estabeleceu as bases da ciência moderna com seu "Discurso sobre o Método", nunca dissociou ciência e religião para tanto. Na verdade, muito pelo contrário, foi sua compreensão divina que lhe permitiu libertar-se do pensamento aristotélico preponderante na época, de que as coisas existiriam por si só ou de que haveria um aspecto místico ou transcendental na própria natureza. Para Descartes, tudo era passível de dúvida, e só a dúvida levaria à busca de evidências, análise e síntese de informações para explicar os fenômenos naturais.
Em sua lógica, afirmava que Deus deveria existir e ser o criador do homem. É dele a célebre afirmação “Penso, logo existo”. Mas ele prossegue: “Portanto, penso e sou. Mas que sou eu? Justamente um ser que pensa e que duvida e que nega.” Mas um ser que pensa e que duvida é um ser imperfeito e finito. Ora, como poderia ele sabê-lo, ou seja, perceber – e claramente – a sua própria finitude essencial e a sua imperfeição, se não tivesse, em si mesmo, uma idéia de alguma coisa infinita e perfeita, ou seja, como poderia ele compreender-se a si próprio sem ter ao mesmo tempo uma idéia de Deus? Assim, para a lógica cartesiana, o perfeito existe antes do imperfeito e o infinito antes do finito, mas no pensamento humano, é quando se atinge o limite que percebe-se o finito, apesar de imaginarmos muitas vezes o contrário. Descartes afirma ainda que “esta idéia do ser perfeito, tão esplêndida e tão rica, é de tal modo superior a nós que não pode provir de nós próprios que somos fracos, finitos, imperfeitos. Não pode provir de nenhum ser finito. Não pode provir senão de Deus”.
A referência de onde tirei a maior parte do texto desse último parágrafo afirma que Einstein gostava muito de se meter em assuntos de religião sem ter nenhum conhecimento do que estava falando, e suas afirmações não tinham nada de novo, só alcançando alguma importância em discussões pelo peso de sua figura. E é exatamente por esse peso que coloco aqui um texto famoso, que está até na Wikipédia:
“O espírito científico, fortemente armado com seu método, não existe sem a religiosidade cósmica. Ela se distingue da crença das multidões ingênuas que consideram Deus um Ser de quem esperam benignidade e do qual temem o castigo – uma espécie de sentimento exaltado da mesma natureza que os laços do filho com o pai – , um ser com quem também estabelecem relações pessoais, por respeitosas que sejam. Mas o sábio, bem convencido, da lei de causalidade de qualquer acontecimento, decifra o futuro e o passado submetidos às mesmas regras de necessidade e determinismo. A moral não lhe suscita problemas com os deuses, mas simplesmente com os homens. Sua religiosidade consiste em espantar-se, em extasiar-se diante da harmonia das leis da natureza, revelando uma inteligência tão superior que todos os pensamentos humanos e todo seu engenho não podem desvendar, diante dela, a não ser seu nada irrisório. Este sentimento desenvolve a regra dominante de sua vida, de sua coragem, na medida em que supera a servidão dos desejos egoístas. Indubitavelmente, este sentimento se compara àquele que animou os espíritos criadores religiosos em todos os tempos”.
O que eu quero dizer com esses textos é que a religião e a ciência não estão em lados tão opostos assim, senão todos os grandes cientistas seriam grandes ateus convictos.
Na verdade, uma das grandes semelhanças entre essas duas áreas é que são confundidas em sua essência, que é certamente abstrata, com implicações ou estruturas bem concretas, principalmente por aquelas pessoas que são obtusas demais para entender qualquer coisa abstrata.
Ou seja, muitos dos que odeiam a religião não sabem muito bem que na verdade o que odeiam é a Igreja e tudo o que é semelhante a ela em termos de exploração humana, objetivos materialistas ou intolerância. Negam a religião pelo seu histórico de guerras e burrice que se deve a suas instituições absolutamente humanas e certamente tão concretas quanto seus objetivos financeiros. Claro que é fácil esquecer que a religião tem natureza mística, espiritual e transcendente, e que nada místico, espiritual ou transcendente vai, no fim das contas, mandar as pessoas pra guerra ou cobrar o dízimo.
Da mesma forma, a ciência acaba, aos olhos de muitos, sendo espelhada pelas instituições que afirmam basear-se nela. Se por um lado todas as grandes religiões do mundo têm em comum o fato de pregarem o bem, e a ciência tem o esse mesmo objetivo máximo, visando a melhoria da qualidade de vida do ser humano, por outro lado ambas têm as guerras e a intolerância caminhando junto com elas e manchando sua história.
Afinal, a questão que motivou essa série de posts e que já estava no ar desde o primeiro é: para onde vamos? Usei o Vioxx para exemplificar os podres da ciência. Uma outra história muito boa é a de Cesare Lombroso, um cientista e médico italiano que estudou a loucura, e, baseado na antropologia voltou-se para um lado mais legal e descreveu o tal do “criminoso nato”. Segundo ele, as características antropométricas (medidas feitas no corpo, como a distância entre os olhos, a distância do olho à testa, o tamanho do nariz ou sua distância ao queixo, por exemplo) predisporiam as pessoas a serem criminosos, o que teve repercussão muito importante no direito penal do mundo todo. Hoje em dia, só alguns idiotas ainda acham que esse cientista, outrora grande e respeitado, estava certo, porque na verdade suas medidas do corpo correspondiam ao padrão de italianos que viviam nas regiões mais pobres, e que por razões sociais, e não genéticas, cometiam mais crimes na Itália. Mas não deixou de ser uma coroação do preconceito pela ciência.
E se a religião tem a Igreja, as Cruzadas ou o tal do “fundamentalismo” islâmico motivando os terroristas por aí, a ciência tem a indústria farmacêutica, a bomba atômica e as experiências em campos de concentração nazista. Tudo em nome da fé; tudo em nome da ciência. O Júlio comentou no primeiro post que “é difícil a gente aceitar que não existe um plano superior, transcendental, seja ele cientifico, religioso ou mítico... O homem é, afinal, só um animal um pouquinho mais espertinho que os outros e é uma angustia sem tamanho conviver com isso”.
E se a religião caminhou de forma desfavorável a ela mesma – tanto que hoje é “pop” ser ateu, graças a essas confusões, contradições e à visão fechada das pessoas, a ciência tem tudo para seguir o mesmo caminho. Da mesma forma que hoje os ateus baseiam-se numa lógica cartesiana para rejeitarem qualquer idéia de Deus, o próprio Descartes foi incapaz de fazê-lo, talvez muito pela própria época em que vivia. Enquanto isso, aqui estamos nós, certamente encerrados num outro paradigma, outro dogma, além do qual não conseguimos enxergar por vivermos numa época em que a ciência é tão inquestionável. Por isso não conseguimos vislumbrar a possibilidade de a própria ciência ser desacreditada amplamente ou que seja considerada um novo vírus mental que impede as pessoas de enxergarem o próximo paradigma, que ainda não sabemos qual é.
Um pouco dessa tendência já me parece bem clara, graças às divisões que parecem se impor entre o que é e o que não é ciência, entre as diversas formas de vê-la, entre as diferentes metodologias e diferentes sistemas de pensamento vigentes na concepção dessa ciência. Tudo me lembra a formação de novas religiões, sempre a partir das mesmas idéias mas que gostam tanto de reiterar que não têm nada em comum, de querer mostrar que é a certa, que é melhor que as outras. É o caso da Homeopatia e da Alopatia, da Psiquiatria e da Psicologia (e dos infinitos campos dentro da psicologia), da Medicina Tradicional Chinesa – e deve haver mais inúmeros exemplos com os quais eu não estou familiarizada.
Bem, era pra eu ter publicado isso em novembro, que vergonhosamente só teve um post, porque é um mês desgraçado de provas em que eu não tenho tempo. Talvez por isso tenha ficado um pouco grande, e era pra ter mais coisa, porque a série sobre ciência devia ser uma trilogia; mas achei melhor prolongar um pouco e separar o 4º post, que vai servir mais como um adendo e quem sabe como um gancho pro próximo assunto. Só tenho que me segurar pra não publicá-lo logo amanhã (já que estou de férias e agora tenho tempo de escrever), que é pra dar tempo das pessoas comentarem esse, o que certamente vai enriquecer o próximo.
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
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10 comentários:
Acho que eu estou precisando mesmo escrever meu próximo post.
Não vou responder por aqui não, apesar de discordar de (quase?) todos os parágrafos, hahaha =)
- Querido Beakman, por que temos o Sistema de Coordenadas Cartesiano e não Descartesiano, se foi Descartes quem o propôs?!
- Resposta: Simples! Ele assinava seus trabalhos com seu nome em Latim, Cartesius, prática muito comum na época...
(Tá, não tem nada a ver... foi só um comentário nerd-matemático... =P)
No filme Quem somos nós? há um trecho comentando sobre a ideia de Deus que a maioria das pessoas carrega: o deus-humano, que pune e te manda pro Inferno! Muahahaha
Depois desse comentário, vem a frase "A ignorância (do povo) é o cúmulo do controle (do clero) daqueles que criaram Deus sua própria imagem e semelhança", em crítica a Igreja Católica em diversas fases da História.
Gosto de relacionar algumas coisas com o Medo. Assim: será que a Religião condena a Ciência por que não a aceita ou porque tem medo de que ela explique o inexplicável e assuma uma posição de "dominação"? Imagino na Idade Média, um bando de velhotes da Alta Igreja pensando "Vamos perder nossa mina de ouro! Queimem todos os envolvidos!". Daí vem a disputa de egos: os dois lados se encontram e dizem, ao mesmo tempo, "Estou certo e sou contra você".
Pensando bem, a disputa Ciência x Religião pode ser algo mais parecido com "herança", como tantas outras coisas por aí.
Não sou ateu. Acredito em algo maior. Sou apenas sem religião =)
Toda religião é a experiência mística morta e petrificada.
Deus é um nome que damos para algo inominável, a fonte do Ser e do Tempo. O ser humano possui a capacidade de sentir e vivenciar a Divindade, porém ele NÃO tem a capacidade de comunicá-la.
A divindade é o Verbo, e não a Palavra. Isto é, a Divindade é o impulso criador que manifesta as palavras, mas nunca pode estar em nenhuma delas (nem em uma combinação delas).
É como o orgasmo, que possui uma palavra para chamá-lo, mas sem ter um você nunca saberá o que é.
O problema é que a maior parte das pessoas parece não ter interesse ou não conseguir ter uma experiência mística, e mais, ficam cobrando para as outras falarem como que foi. Isso obriga elas a mentir.
Essas mentiras são os símbolos religiosos, que em si só não possuem poder nenhum a não ser lembrar os que vivenciaram o Divino algum diminuto aspecto.
E agora vem o pior: os cegos usam os símbolos do Divino como o próprio Divino, e condenam à morte todo aquele que vai contra eles ou tenta criar novos.
Talvez o um dos poucos bons exemplos seja o do Budismo, especialmente o Zen. Eles costumam dizer "Se algum dia você encontrar o Buda, mate-o". Isso é uma forma de explicar que o Buda em si é só uma ilustração da Divindade, e se você espera encontrar ele jamais verá a Verdade.
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Por outro lado a Ciência busca a experiência empírica, e portanto não aceita dogmas. O principal problema é que ela responde Como, mas não Por Quê...
São coisas completamente diferentes nesse sentido.
Olá! Em primeiro lugar queria agradecer aos posts no meu blog. Pode deixar que assim que tiver um tempo vou procurar o filme que vc recomendou.
Uma pena que não deu pra conversar mto no casamento do Doug. Enfim...
Sobre teu post, no livro "Uma breve história do tempo", do Stephen Hawking, ele comenta no final quais são os pontos falhos nas teorias que possuímos hoje sobre a origem do universo e dos buracos negros. E ele diz que quando estes pontos falhos tiverem sido explicados, então teremos atingido o conhecimento de Deus.
Na minha interpretação, a visão dele é de que a humanidade usa a religião para explicar as coisas que a ciência ainda não é capaz de explicar. No entanto, a ciência está em constante evolução, e pode ser que chegue um dia no qual a ciência seja capaz de explicar absolutamente tudo. De onde viemos, para onde vamos, etc... Será que quando esse dia chegar (se chegar) ainda vai existir alguma religião?
Oi Erika!
Vou mandar um comentário só para você poder postar a parte quatro já que, como é de costume, o assunto sempre acaba quando eu falo, no seu blog não seria diferente neh? ¬¬'
Acho que vc falou tudo quando disse não conseguimos enxergar qual será o próximo paradigma... algo como aquela história de que os índios não "enxergavam" as caravelas chegando à América pois jamais haviam visto coisa semelhante.
Agora como o Nietzsche escreveu com todas as letras sobre a mesma frase acho que vale comentar: No "Penso, logo existo." Ele foi, de uma maneira perturbadora, um pouco além do "o que sou?" e perguntou: Mas sou eu ou o que pensa? e "o que é pensar?"
Da mesma forma, as "certezas" assumidas pela "religião" ou a "ciência" são passíveis de questionamentos desde sua essência, muito volúveis. Mas como nós precisamos de certezas e não somos muito hábeis em conviver com a dúvida no geral, estas "certezas" nos caem bem, nos trazem segurança, nos dão uma dica de onde viemos e para onde vamos...
Enfim, não sei se acredito nele, nem em mim...
Boas Férias
=D
Maravilha de post! Encontrei do nada, coisas que acontecem "por acaso" apesar de não crer no acaso.
Parabéns pelo desenvolvimento do assunto, creio que devemos discutir mais os diversos pontos de vista sobre um assunto ao invés de querermos impor verdades absolutas.
Novamente, parabéns!
Ótimo texto Eka, se não um dos melhores que já li seu, e isso me lembrou muito um livro que adoro do Asimov, que é a Trilogia da Fundação, me avise se vc já leu, caso não, já sei o que te dar de presente no fim/começo do ano.
Não vejo a hora do blog(influ)entrar no ar fiquei bem entusiasmada com seu texto, de verdade!!!
bjkas
Nati
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