Comecei a escrever uma resenha sobre ele, mas resolvi que era imprescindível colocar aqui alguns trechos do livro, porque enquanto lia, comecei a ter uma grande coceira mental, e simplesmente não conseguiria continuar lendo se não pegasse uma folha de papel e anotasse alguns parágrafos (ou pelo menos a página em que estavam pra eu lembrar depois). E foi o que eu fiz (de madrugada, anotando trechos e tentando fazer correlações simbólicas e psicanalíticas debaixo do edredom).
Como as citações são um pouco grandes, porque têm uma linha de pensamento e tudo, decidi não colocá-las junto com a resenha, que eu já acho que vai ficar grandinha, porque senão ninguém teria coragem de ler.
Então não vou colocar nada sobre o livro (ok, seu estraga prazeres, a transcrição é literal, então você pode procurar um pedaço no google), e a resenha só sai amanhã, aqui nesse mesmo horário e nesse mesmo canal.
Mas com certeza, por aqui já dá pra ter muito mais vontade de ler o livro do que por qualquer coisa que eu possa dizer a seu respeito. Então aí vai...
“— Sei o que vais dizer-me — continuou resignado. — Sempre tropeçamos com isso! Mas ouve-me ainda um momento: este é um dos pontos em que se vê mais claramente os defeitos da religião. Esse Deus da antiga e da nova Aliança é, antes de tudo, uma figura extraordinária, mas não o que realmente deveria ser. Representa o bom, o nobre, o paternal, o belo e também o elevado e o sentimental... está bem! Mas o mundo se compõe também de outras coisas. E todas essas coisas são simplesmente atribuídas ao Diabo; toda essa parte do mundo, toda essa outra metade é encoberta e silenciada. Glorifica-se a Deus como o Pai de toda a vida, ao mesmo tempo em que se oculta e se silencia a vida sexual, fonte e substrato da própria vida, declarando a pecado e obra do Demônio. Não faço a menor objeção a que se adore esse Deus Jeová. Mas creio que devemos adorar e santificar o mundo inteiro em sua plenitude total e não apenas essa metade oficial, artificialmente dissociada. Portanto, ao lado do culto de Deus devíamos celebrar o culto do Demônio. Isto seria o certo. Ou mesmo criar um deus que integrasse em si também o demônio e diante do qual não tivéssemos que cerrar os olhos para não ver as coisas mais naturais do mundo.”
“— Falamos em demasia — disse ele com gravidade desacostumada. — As palavras engenhosas não têm qualquer valor, absolutamente nenhum. Só conseguem afastar-nos de nós mesmos. E afastar-se de si mesmo é um pecado. É preciso que se saiba encerrar-se em si mesmo, como a tartaruga.”
“Ainda me lembro como as lágrimas me saltaram aos olhos ao sair do café num domingo pela manhã e ver uns meninos que brincavam pela rua, radiantes, limpos, bem penteados e com roupas domingueiras. Assim, enquanto divertia meus amigos e às vezes os assustava com meu incrível cinismo, entre risos bêbados, diante das mesas sujas dos cafés de baixa categoria, conservava em meu coração um respeito oculto por tudo aquilo que conspurcava com meus ditos, e em meu interior permanecia ajoelhado e chorando diante de minha alma, diante do passado, diante de minha mãe e diante de Deus.”
“— Sempre achamos que são demasiadamente estreitos os limites de nossa personalidade! Atribuímos à nossa pessoa somente aquilo que distinguimos como individual e divergente. Mas cada um de nós é um ser total do mundo, e da mesma forma como o corpo integra toda a trajetória da evolução, remontando ao peixe e mesmo a antes, levamos em nossa alma tudo o quanto desde o princípio está vivendo na alma dos homens. Todos os deuses e todos os demônios que já existiram, quer entre os gregos, os chineses ou os cafres, todos estão conosco, todos estão presentes, como possibilidades, desejos ou caminhos. Se toda a humanidade perecesse, com exceção de uma só criança medianamente dotada, esse menino sobrevivente tornaria a encontrar o curso das coisas e poderia criar tudo de novo: deuses, demônios e paraísos, mandamentos e proibições, antigos e novos Testamentos.
— Pois bem — objetei-lhe. — Mas que fim leva o valor do indivíduo? Para que aspiramos a algo se já temos tudo concluído em nós mesmos?
— Alto lá! — exclamou Pistórius com força. — Há muita diferença entre levarmos simplesmente o mundo em nós mesmos e conhecê-lo. Um louco pode expor idéias que lembrem as de Platão e um colegial devoto pode criar em sua imaginação profundas conexões mitológicas que aparecem nas doutrinas dos gnósticos ou de Zoroastro. Mas sem sabê-lo! E enquanto não sabe, é uma árvore ou uma pedra, ou quando muito um animalzinho. Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas. Todos eles revelam possibilidades de chegar a ser homens, mas só quando vislumbram e aprendem a levá-las em parte à sua consciência é que se pode dizer que possuem uma...”
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